Lincoln e Django são filmes longos. E ambos falam daquele momento fundamental da história americana, quando a escravidão estava sendo questionada. Mas é só isso. Não há mais nenhuma semelhança entre os dois longas (repito a palavra porque eles passam de 2h30 de película).
Lincoln é político e psicológico, real e irretocável. Como eu já disse na semana passada.
Django é o oposto: polêmico, físico e ficcional. É sangue e risos. Aliás, daí vem a polêmica, Tarantino consegue nos fazer rir em um filme que mostra mais horrores da escravidão do que a maioria dos que já falaram do tema.
Faz piada da Ku Klux Klan, de gente explodindo e sendo baleada ou chicoteada. Você se entristece com o sofrimento do ser humano e, em seguida, gargalha sem culpa (dependendo da hora do riso, alguns gargalham com culpa).
É um grande filme, pode acreditar. Se parasse no momento em que aparece a palavra Mississipi, seria perfeito, talvez um novo Pulp Fiction. Só que dali em diante o ritmo cai, há menos graça. Ainda um bom filme, embora pareça que Tarantino 1 foi dormir e veio Tarantino 2 para terminar. De qualquer modo, mereceu a indicação. Não leva, claro. Mas acho que Tarantino sabia disso quando fez o filme.
Idéia na Rede
O mundo conectado
quinta-feira, janeiro 24, 2013
terça-feira, janeiro 22, 2013
O desespero do escrevinhador
Escrever é criar significado no caos.
Uhnnn, "criar significado"... HAHAHAHHAHA. Aham.
(este programa foi interrompido pelo desespero do escrevinhador. voltaremos à programação normal em alguns instantes.)
Uhnnn, "criar significado"... HAHAHAHHAHA. Aham.
(este programa foi interrompido pelo desespero do escrevinhador. voltaremos à programação normal em alguns instantes.)
sexta-feira, janeiro 18, 2013
Malévolos e maquiavélicos (ironia on)
Ontem foi dia de destruir Zezé Polessa, atriz maquiavélica que assassinou o motorista idoso porque ele errou o caminho.
Hoje é dia de defender Zezé Polessa, tão idosa quanto o malévolo motorista, aquele que fez segredo que passava mal, sempre erra o caminho e levou uma bronca porque ela perdeu um compromisso. Morreu mais tarde. Poderia ter morrido com ou sem a bronca, tudo indica. Além de errar o caminho, não sabe nem morrer?
O negócio é arranjar um alvo e falar mal dele.
Hoje é dia de defender Zezé Polessa, tão idosa quanto o malévolo motorista, aquele que fez segredo que passava mal, sempre erra o caminho e levou uma bronca porque ela perdeu um compromisso. Morreu mais tarde. Poderia ter morrido com ou sem a bronca, tudo indica. Além de errar o caminho, não sabe nem morrer?
O negócio é arranjar um alvo e falar mal dele.
quinta-feira, janeiro 03, 2013
Spielberg não foi Spielberg
Lincoln mereceu as indicações e vai merecer ser o melhor filme. Confesso que sentei para ver me sentindo blasé. Vi dúzias de horas sobre essa história, entre filmes e séries contando a vida de Lincoln e da Guerra Civil. Li livros e achava que sabia cada detalhe biográfico, cada frase importante dos discursos. O que um diretor de grandes cenas abertas como Spielberg acrescentaria à figura biblíca e majestosa de Lincoln?
Mas Spielberg não foi Spielberg. Em vez de um filme físico, fez um thriller psicológico e político, uma trama literária, onde a ação é carregada pelas grandes e profundas frases magistralmente interpretadas por uma constelação de atores como eu não vejo há anos. Spielberg não foi Spielberg ao filmar o cinza e o escuro, em um filme quase intimista. E nos mostrou porque é Spielberg quando disse a Tony Kushner que não iria filmar aquele calhamaço de 500 páginas sobre a vida de Lincoln - que daria uma trilogia de 9 horas - e sim as últimas 80 páginas em que ele se focava na votação da 13ª emenda.
Por último, o filme é o que é por causa de Lewis, as anedotas, as respostas inesperadas, o andar alquebrado e um controle tão absoluto que só encontra equivalente na dimensão de um personagem que eu considerava impossível de ser retratado por inteiro. Ao menos para mim, Lewis consegue.
Vou precisar ver Lincoln mais umas duas vezes.
Mas Spielberg não foi Spielberg. Em vez de um filme físico, fez um thriller psicológico e político, uma trama literária, onde a ação é carregada pelas grandes e profundas frases magistralmente interpretadas por uma constelação de atores como eu não vejo há anos. Spielberg não foi Spielberg ao filmar o cinza e o escuro, em um filme quase intimista. E nos mostrou porque é Spielberg quando disse a Tony Kushner que não iria filmar aquele calhamaço de 500 páginas sobre a vida de Lincoln - que daria uma trilogia de 9 horas - e sim as últimas 80 páginas em que ele se focava na votação da 13ª emenda.
Por último, o filme é o que é por causa de Lewis, as anedotas, as respostas inesperadas, o andar alquebrado e um controle tão absoluto que só encontra equivalente na dimensão de um personagem que eu considerava impossível de ser retratado por inteiro. Ao menos para mim, Lewis consegue.
Vou precisar ver Lincoln mais umas duas vezes.
terça-feira, novembro 13, 2012
Texto Skol e texto Astaire
Lendo agora um texto gringo, veio a mente a existência de dois tipos de texto: o preciso e o brilhante (tem outros, tem sim, mas eu pensei nesses, ué).
O brilhante todo mundo conhece, é aquele fanfarrão que entra deslizando na festa, girando, braços abertos e leveza de Fred Astaire, cada movimento genial nos provoca um sorriso, gargalhada ou esgar. Tem esse.
Mas tem também o preciso. Esse você lê sem precisar sorrir, sem parar para pensar que o autor manda bem, oras, vocês podem nem lembrar que alguém escreveu. Só que ele não te larga, nem você a ele. Textinho redondo, Skol, parece que te fecha no carro, viseira nos olhos, ele fez um mundo próprio com regras que você nem pensa em discutir.
Só os bons costuram assim. Ô inveja.
O brilhante todo mundo conhece, é aquele fanfarrão que entra deslizando na festa, girando, braços abertos e leveza de Fred Astaire, cada movimento genial nos provoca um sorriso, gargalhada ou esgar. Tem esse.
Mas tem também o preciso. Esse você lê sem precisar sorrir, sem parar para pensar que o autor manda bem, oras, vocês podem nem lembrar que alguém escreveu. Só que ele não te larga, nem você a ele. Textinho redondo, Skol, parece que te fecha no carro, viseira nos olhos, ele fez um mundo próprio com regras que você nem pensa em discutir.
Só os bons costuram assim. Ô inveja.
quinta-feira, fevereiro 09, 2012
Quem é
Rogério
Godinho é jornalista com passagem por veículos como Gazeta
Mercantil, Forbes Brasil, tendo sido ainda editor-executivo e
associado das revistas B2B Magazine e Consumidor Moderno.
Colaborou
e gerenciou a produção de especiais e capas nas publicações Valor
Econômico, Você S.A. e Istoé Dinheiro.
É
autor das obras “O
filho da crise”,
lançado em novembro de 2011, “Tente
outra vez”,
em
novembro de 2014, e “Nunca
na solidão”,
em
dezembro de 2014.
Estudou
história global e globalização em Harvard
e frequentou o Massachusetts
Institute of Technology (MIT)
como aluno-visitante de filosofia.
quarta-feira, novembro 09, 2011
USP - O que a mídia não viu e o debate inteligente que perdemos
O baseado não tem nada a ver com a questão. Começou bem antes disso, na verdade. Se você leu jornais e revistas, deve achar que todos os alunos que querem a PM fora são comunistas, maconheiros, desocupados, filhinhos de papai, etc. Então, peço que leia este texto. Principalmente se acha que o assunto é uma perda de tempo.
Primeiro, eu sou contra a ocupação da reitoria. Segundo, é fato que a lista de coisas erradas parece não ter fim. Fiquei puto porque os radicais conseguiram destruir o debate. Afastaram a imprensa (bateram inclusive), misturaram críticas ao capitalismo, até molotov tinha ontem (suprema idiotice).
Mas a estupidez pra mim termina aí. Não acredite que a maior parte das pessoas lá está protestando a favor do comunismo, leninismo ou qualquer ismo antigo. Não é verdade, embora seja sempre legal divulgar esse símbolo, a reação das pessoas é forte e imediata.
O que está realmente mobilizando a parte pensante do grupo é um debate bem complexo sobre autonomia universitária, que tem raízes históricas (até medievais) e um conceito educacional relevante. Não é à toa que Harvard tem uma polícia universitária. Aliás, são muito eficientes (isso não quer dizer que não tenha assaltos, eu soube de dois casos enquanto estive lá).
De qualquer forma, parece evidente que vale discutir sim. Principalmente porque esta ainda é a principal universidade do País e precisa ser um modelo para o resto (que péssimo trabalho alunos e reitoria tem feito até agora).
E a discussão é a seguinte: a universidade pública se inspira em um modelo em que os alunos podem influenciar a gestão do espaço. Então a briga começou quando este reitor foi escolhido de uma maneira que os alunos consideram arbitrária (existe um protocolo e os alunos consideram que ele não foi seguido). E começaram os embates.
Aí o reitor – se sentindo inseguro – pediu ao governador para colocar a PM lá. Um mês depois do convênio ser assinado, uma aluna foi baleada. Para os alunos, parecia que a segurança não tinha melhorado nada.
A segurança é de fato um tema polêmico, mas é complexo e merecia sim ser discutido. A área da USP é grande demais e mal iluminada, então o contingente necessário para dar segurança teria de ser enorme. E isso não vai acontecer. Por isso, os alunos preferem iluminação e um sistema de vídeo.
Some isso ao fato de que existe um longo histórico de truculência, alunos de todo tipo e perfil já reclamaram contra a PM e existe uma quantidade grande de casos engavetados. Enxergue isso do ponto de vista da autonomia universitária (pesquise o tema, se tiver interesse). O aluno consciente se sente ferido sem receber nada (nem segurança) em troca. Inclusive, a PM já respondeu até a professores que não estão lá para dar segurança ao indivíduo e sim ao patrimônio. Será que não vale mesmo a pena discutir um modelo melhor?
A movimentação dos estudantes foi estúpida porque foi feita da forma errada e no momento errado. Mas o fato é que o debate não tem nada a ver com fumar maconha e sim com um conceito importante e que merecia ser discutido. Pena que nenhum jornalista teve cérebro pra abordar isso em uma matéria. Dá muito mais ibope fazer matéria caricata, mesmo que a consequência seja incentivar o preconceito nos outros. Bom trabalho, imprensa.
Primeiro, eu sou contra a ocupação da reitoria. Segundo, é fato que a lista de coisas erradas parece não ter fim. Fiquei puto porque os radicais conseguiram destruir o debate. Afastaram a imprensa (bateram inclusive), misturaram críticas ao capitalismo, até molotov tinha ontem (suprema idiotice).
Mas a estupidez pra mim termina aí. Não acredite que a maior parte das pessoas lá está protestando a favor do comunismo, leninismo ou qualquer ismo antigo. Não é verdade, embora seja sempre legal divulgar esse símbolo, a reação das pessoas é forte e imediata.
O que está realmente mobilizando a parte pensante do grupo é um debate bem complexo sobre autonomia universitária, que tem raízes históricas (até medievais) e um conceito educacional relevante. Não é à toa que Harvard tem uma polícia universitária. Aliás, são muito eficientes (isso não quer dizer que não tenha assaltos, eu soube de dois casos enquanto estive lá).
De qualquer forma, parece evidente que vale discutir sim. Principalmente porque esta ainda é a principal universidade do País e precisa ser um modelo para o resto (que péssimo trabalho alunos e reitoria tem feito até agora).
E a discussão é a seguinte: a universidade pública se inspira em um modelo em que os alunos podem influenciar a gestão do espaço. Então a briga começou quando este reitor foi escolhido de uma maneira que os alunos consideram arbitrária (existe um protocolo e os alunos consideram que ele não foi seguido). E começaram os embates.
Aí o reitor – se sentindo inseguro – pediu ao governador para colocar a PM lá. Um mês depois do convênio ser assinado, uma aluna foi baleada. Para os alunos, parecia que a segurança não tinha melhorado nada.
A segurança é de fato um tema polêmico, mas é complexo e merecia sim ser discutido. A área da USP é grande demais e mal iluminada, então o contingente necessário para dar segurança teria de ser enorme. E isso não vai acontecer. Por isso, os alunos preferem iluminação e um sistema de vídeo.
Some isso ao fato de que existe um longo histórico de truculência, alunos de todo tipo e perfil já reclamaram contra a PM e existe uma quantidade grande de casos engavetados. Enxergue isso do ponto de vista da autonomia universitária (pesquise o tema, se tiver interesse). O aluno consciente se sente ferido sem receber nada (nem segurança) em troca. Inclusive, a PM já respondeu até a professores que não estão lá para dar segurança ao indivíduo e sim ao patrimônio. Será que não vale mesmo a pena discutir um modelo melhor?
A movimentação dos estudantes foi estúpida porque foi feita da forma errada e no momento errado. Mas o fato é que o debate não tem nada a ver com fumar maconha e sim com um conceito importante e que merecia ser discutido. Pena que nenhum jornalista teve cérebro pra abordar isso em uma matéria. Dá muito mais ibope fazer matéria caricata, mesmo que a consequência seja incentivar o preconceito nos outros. Bom trabalho, imprensa.
segunda-feira, outubro 10, 2011
Um lobo demasiadamente humano
“O sangue do corte em sua cabeça – o primeiro movimento de seu pai – escorre de seu rosto. Seu olho esquerdo está cego, […] mas com o direito pode ver a costura da bota de seu pai se desfazendo.” Na virada do século XVI, o jovem Thomas Cromwell é espancado pelo pai. É pela violência familiar que a escritora britânica Hilary Mantel inicia o romance “Wolf Hall”, uma saga histórica humanizada a partir do ponto de vista de um dos mais intrigantes personagens da Inglaterra. Como pano de fundo, Hilary repass;a o roteiro muitas vezes percorrido da mulher ardilosa (Ana Bolena) que seduz o rei (Henrique VIII) ansioso por um filho homem. A principal consequência histórica seria o rompimento da realeza britânica com a Igreja Católica Romana.
É sob esta ótica pessoal (dela e de um Cromwell humanizado) que a autora constrói esta saga que ainda em 2011 chega às livrarias traduzida pela editora Record. A escritora obteve dois prêmios por Wolf Hall: em 2009 o prestigioso Booker Prize, dado ao romancistas modernos, e, em junho de 2010, o primeiro Walter Scott, criado especificamente para destacar romances históricos. Embora usado por uma infinidade de grandes autores, de Shakespeare a Gore Vidal, o gênero ganhou espaço nos últimos anos nas prateleiras e nas vendas das livrarias, uma tendência somente reforçada pelo prêmio Walter Scott (este também autor de um dos grandes romances históricos da literatura mundial).
No romance, Hilary se concentra na história do arquiteto desta revolução – também política – e de como ele saiu das botas de um pai - bêbado e cruel - ao posto de homem mais ardiloso da história da Inglaterra.
Thomas Cromwell encarna o maquiavélico chanceler que durante oito anos aconselhou Henrique VIII. Após a fuga de casa, Cromwell reaparece em 1527, um período sucessivamente utilizado no teatro (inclusive por Shakespeare), inúmeros filmes e até uma série de TV canadense (Tudors, com locações na Irlanda). Como séculos se passaram e os registros sobre os eventos não são precisos, cada escritor toma as liberdades que julga interessantes para expor seus pontos de vista. No caso de Wolf Hall, além da ideia de um pai violento, Cromwell ainda teria considerado um casamento com Maria Bolena e realizado um improvável encontro com Thomas More quando ambos eram crianças.
Cromwell é homem de origem humilde, tendo sido soldado, mercador, vigarista no tabuleiro fazendo truques com três cartas na mesa.
A alusão do título (Wolf Hall) à frase “o homem é o lobo do homem” poderia indicar um personagem principal cruel e calculista. Cromwell pode bem ser isso, mas Hilary destaca acima de tudo o humano, um contraponto às complexas manipulações contra nobres e religiosos engendradas por seu protagonista.
Quando retorna à casa, ele afaga afetuosamente a cadela de nome Bella, faz da esposa confidente, ouve com atenção os filhos. Assim, Hilary repete o ponto de vista exibido em livro anterior, sobre a Revolução Francesa, onde mostrou um lado mais suave de Robespierre.
Em cada momento, a relação com a família faz o leitor supor que Cromwell tem ainda mais razões psicológicas para cometer crueldades. Além dos maus tratos na infância, ele, cedo demais, perde entes queridos. De um lado, o homem frio fará de tudo para não ser novamente subjugado; de outro, precisa defender os familiares que sobraram.
Mas, se com a família é sinceramente afável, com nobres Cromwell é falsamente submisso, dono de eficaz sarcasmo. Na narrativa, prova que ter um aspecto humano não o torna inábil ou incerto na execução de seus objetivos. “Trabalha todas as horas, primeiro a se levantar, último a ir para a cama”, uma energia coerente com o homem de origem simples. É o típico “man of all trades”. Nas voz da própria Hilary, em um trecho lido em voz alta por ela em um evento realizado no ano passado em uma livraria londrina, Cromwell pode “rascunhar um contrato, treinar um falcão, desenhar um mapa, parar uma briga de rua, decorar uma casa e influenciar o júri”. Claro, a descrição e o ritmo ficam melhores não somente pelo sotaque inglês de Hilary, mas especialmente na língua nativa em que ela combina aliterações entre “stop” e “street” e “fix” e “furnish”. Mais adiante, ela garante que Cromwell sabe a bíblia de cor em latim (“para o caso do abade tropeçar”).
Este manejo da ironia respeitosa, especialmente forte nas frases de Cromwell, fica sempre no limite entre o ataque e o sorriso. A mordacidade contida de Hilary casa perfeitamente com os salões nobres, mas agora em um estilo moderno, similar aos colegas escritores que também foram agraciados com o Booker Prize. Nada da inversão e rodeios típicos do século XVI ou XVII; Hilary é direta e limpa, embora melancolicamente solene e algo oblíqua no sentido da frase. Quando Cromwell afirma que o rei Henrique VIII é na verdade pobre, a cunhada apenas pergunta “E ele sabe disso?”. A observação vem rápida, poucas palavras, não se estende.
Como a história do rei e sua amante coroada é largamente conhecida, Hilary retira Cromwell de diversas cenas cruciais. Muitas vezes, os acontecimentos chegam ao conhecimento do leitor porque um personagem chega para informar o arguto advogado. Assim, a todo momento, estamos sempre ao lado dele, observando suas reações.
A restrição ao ponto de vista de Cromwell não torna Hilary completamente complacente com os personagens humanizados. Não nega que a proximidade com o poder os enriquece. Em determinado momento, ela filosofa que a queda de um corrupto não implica em melhoria. Afinal, cai o “homem já gordo”, e talvez parcialmente satisfeito, enquanto chega um “magro e faminto”.
Mas a principal análise pode ser feita a partir do contraste e conflito entre Thomas Cromwell e Thomas More, inimigos na religião e no poder. More precede a Cromwell como Lorde Chanceler, mas entrou para a História como humanista loquaz e autor de Utopia, livro que propagou a ideia de uma sociedade perfeita e possível. Desprezava a guerra e os militares (mais um contraste com o ex-soldado Cromwell), enquanto sonhava com a paz e a harmonia. Defendia uma reforma na Igreja, mas era fortemente religioso e católico.
Cromwell, por seu lado, que é visto em certo ponto do romance lendo “O Príncipe” de Maquiavel, nunca esquece da origem militar e não tem nenhum escrúpulo em romper com Roma. Importante lembrar que na época, o Papa é um Médici e chegou ao posto graças ao dinheiro obtido pela usura pecaminosa praticada pela família. A venda de indulgências torna a religião apenas mais uma forma de combinação entre poder e exploração (talvez a mais eficaz delas).
Hilary mostra um Cromwell muito íntimo e solidário do Cardeal Wolsey, ex-Lorde Chanceler e a quem serviu como auxiliar. Entretanto, a fidelidade ao Cardeal decorre antes por afeição e gratidão ao aprendizado na arte da manipulação do que por qualquer fervor religioso.
Entre More e Cromwell, se estabelece a oposição entre o utópico e o homem prático. More é nobre, talvez possa se dar ao luxo de ser utópico; Cromwell teve origem simples e é por essência individualista.
Em todo o livro, o ponto de vista de Cromwell o torna vitorioso. Mesmo um leitor temeroso do personagem pode inverter sua preferência ao ser apresentado a um More fervoroso a ponto de queimar luteranos na fogueira, de tratar mal a esposa e dizer obscenidades. Enquanto ganha o respeito do leitor pela inteligência e sagacidade, Cromwell reina sem restrições no âmbito humano, seja no trato da família ou das pessoas a quem trata com respeito. No embate, Hilary parece presumir para o leitor que o verdadeiro lobo do homem era o religioso, idealista e refém da utopia, última e nobre barreira em um mundo em pleno Renascimento.
Hilary não conclui a saga nas 650 páginas de Wolf Hall. No momento, trabalha em uma sequência, ora com nome provisório de “O espelho e a luz”, a qual ela pretende publicar ainda em 2011. Não se sabe se os contrastes se intensificam ou quem será o opositor, porque neste período Thomas More já não é mais vivo. Mas é certo que Hilary deve uma vez mais questionar sobre quem é de fato o lobo do homem. Mesmo que seja um lobo demasiadamente humano.
É sob esta ótica pessoal (dela e de um Cromwell humanizado) que a autora constrói esta saga que ainda em 2011 chega às livrarias traduzida pela editora Record. A escritora obteve dois prêmios por Wolf Hall: em 2009 o prestigioso Booker Prize, dado ao romancistas modernos, e, em junho de 2010, o primeiro Walter Scott, criado especificamente para destacar romances históricos. Embora usado por uma infinidade de grandes autores, de Shakespeare a Gore Vidal, o gênero ganhou espaço nos últimos anos nas prateleiras e nas vendas das livrarias, uma tendência somente reforçada pelo prêmio Walter Scott (este também autor de um dos grandes romances históricos da literatura mundial).
No romance, Hilary se concentra na história do arquiteto desta revolução – também política – e de como ele saiu das botas de um pai - bêbado e cruel - ao posto de homem mais ardiloso da história da Inglaterra.
Thomas Cromwell encarna o maquiavélico chanceler que durante oito anos aconselhou Henrique VIII. Após a fuga de casa, Cromwell reaparece em 1527, um período sucessivamente utilizado no teatro (inclusive por Shakespeare), inúmeros filmes e até uma série de TV canadense (Tudors, com locações na Irlanda). Como séculos se passaram e os registros sobre os eventos não são precisos, cada escritor toma as liberdades que julga interessantes para expor seus pontos de vista. No caso de Wolf Hall, além da ideia de um pai violento, Cromwell ainda teria considerado um casamento com Maria Bolena e realizado um improvável encontro com Thomas More quando ambos eram crianças.
Cromwell é homem de origem humilde, tendo sido soldado, mercador, vigarista no tabuleiro fazendo truques com três cartas na mesa.
A alusão do título (Wolf Hall) à frase “o homem é o lobo do homem” poderia indicar um personagem principal cruel e calculista. Cromwell pode bem ser isso, mas Hilary destaca acima de tudo o humano, um contraponto às complexas manipulações contra nobres e religiosos engendradas por seu protagonista.
Quando retorna à casa, ele afaga afetuosamente a cadela de nome Bella, faz da esposa confidente, ouve com atenção os filhos. Assim, Hilary repete o ponto de vista exibido em livro anterior, sobre a Revolução Francesa, onde mostrou um lado mais suave de Robespierre.
Em cada momento, a relação com a família faz o leitor supor que Cromwell tem ainda mais razões psicológicas para cometer crueldades. Além dos maus tratos na infância, ele, cedo demais, perde entes queridos. De um lado, o homem frio fará de tudo para não ser novamente subjugado; de outro, precisa defender os familiares que sobraram.
Mas, se com a família é sinceramente afável, com nobres Cromwell é falsamente submisso, dono de eficaz sarcasmo. Na narrativa, prova que ter um aspecto humano não o torna inábil ou incerto na execução de seus objetivos. “Trabalha todas as horas, primeiro a se levantar, último a ir para a cama”, uma energia coerente com o homem de origem simples. É o típico “man of all trades”. Nas voz da própria Hilary, em um trecho lido em voz alta por ela em um evento realizado no ano passado em uma livraria londrina, Cromwell pode “rascunhar um contrato, treinar um falcão, desenhar um mapa, parar uma briga de rua, decorar uma casa e influenciar o júri”. Claro, a descrição e o ritmo ficam melhores não somente pelo sotaque inglês de Hilary, mas especialmente na língua nativa em que ela combina aliterações entre “stop” e “street” e “fix” e “furnish”. Mais adiante, ela garante que Cromwell sabe a bíblia de cor em latim (“para o caso do abade tropeçar”).
Este manejo da ironia respeitosa, especialmente forte nas frases de Cromwell, fica sempre no limite entre o ataque e o sorriso. A mordacidade contida de Hilary casa perfeitamente com os salões nobres, mas agora em um estilo moderno, similar aos colegas escritores que também foram agraciados com o Booker Prize. Nada da inversão e rodeios típicos do século XVI ou XVII; Hilary é direta e limpa, embora melancolicamente solene e algo oblíqua no sentido da frase. Quando Cromwell afirma que o rei Henrique VIII é na verdade pobre, a cunhada apenas pergunta “E ele sabe disso?”. A observação vem rápida, poucas palavras, não se estende.
Como a história do rei e sua amante coroada é largamente conhecida, Hilary retira Cromwell de diversas cenas cruciais. Muitas vezes, os acontecimentos chegam ao conhecimento do leitor porque um personagem chega para informar o arguto advogado. Assim, a todo momento, estamos sempre ao lado dele, observando suas reações.
A restrição ao ponto de vista de Cromwell não torna Hilary completamente complacente com os personagens humanizados. Não nega que a proximidade com o poder os enriquece. Em determinado momento, ela filosofa que a queda de um corrupto não implica em melhoria. Afinal, cai o “homem já gordo”, e talvez parcialmente satisfeito, enquanto chega um “magro e faminto”.
Mas a principal análise pode ser feita a partir do contraste e conflito entre Thomas Cromwell e Thomas More, inimigos na religião e no poder. More precede a Cromwell como Lorde Chanceler, mas entrou para a História como humanista loquaz e autor de Utopia, livro que propagou a ideia de uma sociedade perfeita e possível. Desprezava a guerra e os militares (mais um contraste com o ex-soldado Cromwell), enquanto sonhava com a paz e a harmonia. Defendia uma reforma na Igreja, mas era fortemente religioso e católico.
Cromwell, por seu lado, que é visto em certo ponto do romance lendo “O Príncipe” de Maquiavel, nunca esquece da origem militar e não tem nenhum escrúpulo em romper com Roma. Importante lembrar que na época, o Papa é um Médici e chegou ao posto graças ao dinheiro obtido pela usura pecaminosa praticada pela família. A venda de indulgências torna a religião apenas mais uma forma de combinação entre poder e exploração (talvez a mais eficaz delas).
Hilary mostra um Cromwell muito íntimo e solidário do Cardeal Wolsey, ex-Lorde Chanceler e a quem serviu como auxiliar. Entretanto, a fidelidade ao Cardeal decorre antes por afeição e gratidão ao aprendizado na arte da manipulação do que por qualquer fervor religioso.
Entre More e Cromwell, se estabelece a oposição entre o utópico e o homem prático. More é nobre, talvez possa se dar ao luxo de ser utópico; Cromwell teve origem simples e é por essência individualista.
Em todo o livro, o ponto de vista de Cromwell o torna vitorioso. Mesmo um leitor temeroso do personagem pode inverter sua preferência ao ser apresentado a um More fervoroso a ponto de queimar luteranos na fogueira, de tratar mal a esposa e dizer obscenidades. Enquanto ganha o respeito do leitor pela inteligência e sagacidade, Cromwell reina sem restrições no âmbito humano, seja no trato da família ou das pessoas a quem trata com respeito. No embate, Hilary parece presumir para o leitor que o verdadeiro lobo do homem era o religioso, idealista e refém da utopia, última e nobre barreira em um mundo em pleno Renascimento.
Hilary não conclui a saga nas 650 páginas de Wolf Hall. No momento, trabalha em uma sequência, ora com nome provisório de “O espelho e a luz”, a qual ela pretende publicar ainda em 2011. Não se sabe se os contrastes se intensificam ou quem será o opositor, porque neste período Thomas More já não é mais vivo. Mas é certo que Hilary deve uma vez mais questionar sobre quem é de fato o lobo do homem. Mesmo que seja um lobo demasiadamente humano.
terça-feira, outubro 04, 2011
Médico, ser superior
O doutor chega 45 minutos atrasado e se esconde no banheiro. Depois, entra na sua sala santa, seguido pela secretária prestativa e os dois confabulam durante alguns segundos. Ela sai, ele coloca o jaleco, confere alguns papéis e vem chamar o primeiro cliente: EU.
Enquanto tudo isso acontecia eu fiquei pensando se devia falar alguma coisa ou não. Ser chato ou besta? Mané ou mala?
Tentei olhar de maneira enigmática para ele, nem sorrindo, nem bravo. Quem sabe funciona?
Nada. Niente. Nem um "foi mal aê manu".
A consulta transcorreu normalmente. No final, ele preencheu meu pedido de ressarcimento, que eu cuidadosamente coloquei dentro do meu livro de 700 páginas (podia ter outros usos).
Já de pé, perguntei casualmente: Nesse período da noite o atraso é normal?
Ele respondeu: "É, o trânsito..."
Um pausa breve.
"...sempre tem quando eu venho do hospital."
Outra pausa, eu olhando para ele com a mesma cara.
"Sempre acontece se eu tenho de atender um paciente."
É. Pois é.
Tudo que eu fiz então foi dizer a palavra "certo" lentamente.
Apertamos as mãos, eu disse tchau, me virei e fui embora.
Tenho certeza que agora eu sou praticamente um monge.
Enquanto tudo isso acontecia eu fiquei pensando se devia falar alguma coisa ou não. Ser chato ou besta? Mané ou mala?
Tentei olhar de maneira enigmática para ele, nem sorrindo, nem bravo. Quem sabe funciona?
Nada. Niente. Nem um "foi mal aê manu".
A consulta transcorreu normalmente. No final, ele preencheu meu pedido de ressarcimento, que eu cuidadosamente coloquei dentro do meu livro de 700 páginas (podia ter outros usos).
Já de pé, perguntei casualmente: Nesse período da noite o atraso é normal?
Ele respondeu: "É, o trânsito..."
Um pausa breve.
"...sempre tem quando eu venho do hospital."
Outra pausa, eu olhando para ele com a mesma cara.
"Sempre acontece se eu tenho de atender um paciente."
É. Pois é.
Tudo que eu fiz então foi dizer a palavra "certo" lentamente.
Apertamos as mãos, eu disse tchau, me virei e fui embora.
Tenho certeza que agora eu sou praticamente um monge.
segunda-feira, outubro 03, 2011
O limite do humor
A suspensão do Rafinha Bastos do CQC reavivou as discussões sobre o limite do humor (dele e do Danilo Gentili). De cara, preciso dizer que eu acredito no direito de fazer piada de (quase) tudo. A exceção é quando a piada incentiva o racismo e a intolerância.
Pelo que eu sei, South Park e Family Guy não chamam negros de macacos ou foram lenientes quanto ao estupro ou relativizaram o holocausto. Quando piadas polêmicas ocorreram, as personagens que as disseram foram retratadas como estúpidas.
Não me entendam mal, não tenho nenhuma intenção de cuspir regra aqui. Eu acho que o humor DEVE tratar dos temas polêmicos e não há fórmula pronta. Eles só pedem mais inteligência do que a dupla do CQC oferece. O South Park já fez alguns episódios polêmicos sobre os judeus. Neles, há personagens, contexto, história, sátira e caricatura. Não um sujeito disparando frases idiotas em um microfone.
Pelo que eu sei, South Park e Family Guy não chamam negros de macacos ou foram lenientes quanto ao estupro ou relativizaram o holocausto. Quando piadas polêmicas ocorreram, as personagens que as disseram foram retratadas como estúpidas.
Não me entendam mal, não tenho nenhuma intenção de cuspir regra aqui. Eu acho que o humor DEVE tratar dos temas polêmicos e não há fórmula pronta. Eles só pedem mais inteligência do que a dupla do CQC oferece. O South Park já fez alguns episódios polêmicos sobre os judeus. Neles, há personagens, contexto, história, sátira e caricatura. Não um sujeito disparando frases idiotas em um microfone.
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