segunda-feira, maio 30, 2011

A fria da Apple

5h47 - O sol acaba de nascer em Boston, Massachusetts. Apesar de ser meados de abril, não parece primavera e os moradores da cidade continuando reclamando do frio. A temperatura está pouco abaixo de zero grau, mas o vento piora bastante a situação. Levanto cedo na esperança de conseguir comprar um iPad 2, a mais nova coqueluche do mercado mundial de gadgets. Esta não é uma matéria sobre os recursos desses aparelhos, pesquise na web e você acha fácil informação. O foco aqui é: como uma empresa trata os consumidores que se interessaram em comprar um de seus produtos.
Antes de ir ao extremo de ir a loja tão cedo, eu até tentei seguir pelos caminhos normais. Como um consumidor moderno, entrei no site da Apple, onde informavam a variedade de tablets à disposição. Depois de um mês pensando se vale mesmo comprar aquele aparelhinho que não é notebook nem celular, decidi gastar o dinheiro. Somente no final da compra, o site informava que o aparelho só chegaria em casa cinco semanas depois. Ou mais. Agora, 90 dias depois de lançar, a Apple jura que consegue entregar em duas semanas. De qualquer forma, o problema não é novo, a empresa fez o mesmo no lançamento dos iPhones e no primeiro iPad. E eu que pensei que a produção just-in-time popularizada na década de 90 havia chegado a todas as empresas.
De qualquer forma, era tempo demais; eu voltaria ao Brasil em duas semanas.
Retornei aos hábitos de consumidor antigo e fui até uma loja. Era uma daquelas impressionantes lojas envidraçadas da Apple que lembram um enorme cubo de gelo. Como o aparelho, são feitas para deslumbrar os consumidores em busca de design e moda. Logo na entrada, um funcionário me explicou que não havia iPads disponíveis para venda, qualquer que fosse a configuração. Mas foi caridoso e revelou como se compra o objeto de desejo da ultramoderna Apple. “Todo dia recebemos, mas eles são vendidos antes mesmo das 10h, quando a loja abre”.
Fiquei sabendo que os consumidores se amontoam na porta antes das 7h e recebem uma senha. Podem comprar no máximo dois iPads, e muitos revendem o excedente, ou até os dois. Costumam ganhar US$ 100 em cima de cada tablet.
Neste momento, a maioria dos consumidores racionais já teria desistido de comprar um produto que na verdade não esta à venda. Também foi o meu caso. Mas por que eu me vi alguns dias depois vendo o sol nascer e passando frio na frente da loja da Apple? É porque resolvi passar pela experiência de um caso único de consumo e loucura coletiva americana. E depois contar para vocês.
Assim, cheguei naquela terça-feira na loja da Apple na Boylston Street, conhecida avenida de Boston. Uma fila com cerca de 40 pessoas esperava do lado de fora da loja da Apple. Eram 7h05 e algumas daquelas pessoas estavam ali havia horas. Alguns minutos depois o funcionário veio até a porta e informou que não haveria iPads disponíveis naquele dia. Mais de 40 dias já haviam se passado desde o lançamento oficial.
A maior parte do grupo dispersou, enquanto alguns candidatos a clientes se aglomeraram para falar com o funcionário, que sabiamente mantinha a porta apenas entreaberta. “O aparelho chega amanhã?” Ele respondia: “Sim, provavelmente. Não há como garantir”.
Há vários aspectos a abordar aqui: o porquê desse irrefreável desejo, qual a razão do cliente não esperar dois meses para receber o produto em casa, como uma empresa se arrisca a perder clientes ao invés simplesmente produzir mais (a resposta oficial da Apple é que eles simplesmente não conseguem, embora a maioria dos especialistas aposte em uma jogada de marketing para criar barulho no mercado).
Ao invés de insistir nesses pontos que exigiriam uma análise psicológica ou uma dose de imaginação, vou me ater ao modo como o cliente é efetivamente tratado pela empresa. O próprio Steve Jobs, considerado um gênio pela maioria do mercado de tecnologia, já adquiriu um histórico de responder mal a clientes. Ou com o que os clientes se importam: na semana seguinte a minha ida à loja da Apple, a mídia americana informava que a empresa da maçã mordida era a última no ranking verde de empresas de tecnologia. Steve Jobs pode ligar para as verdinhas, mas não muito para ser verde.
Sabendo que precisava ir até o fim para poder contar a história, voltei no dia seguinte à mesma loja. Graças a um táxi, cheguei ainda mais cedo. Eram 6h20. O taxista riu quando eu expliquei o que era aquela fila de 15 pessoas parada no frio na avenida Boylston, em Boston. Alguns minutos depois de eu entrar na fila, um bêbado passou repetindo: “iPad 2, iPad 2”. Mais tarde, uma mulher se aproximou e me perguntou do que se tratava aquilo. Eu respondi, ela agradeceu e se afastou com um sorriso incrédulo.
Os donos do primeiro e segundo lugares estavam sentados em cadeiras de praia. Logo atrás delas, quatro pessoas dormiam embaixo de cobertores (depois eu iria descobrir que eles estavam ali para revender os iPads e ganhar, em média, US$ 100). O resto estava na fila de pé, como consumidores (quase) normais.
Às 7h15 já eram mais de 40 pessoas na fila. Mais quinze minutos e o grupo somava 50 pessoas. O rapaz a minha frente era de Cingapura e estava ali porque já era um usuário do iPad 1. Nunca havia testado os produtos da concorrência, mas parecia seguro de que o iPad ainda era a melhor opção “pelo número de aplicações”.
Essa situação está mudando rapidamente. O iPad ainda lidera com quase 340 mil aplicações disponíveis e os concorrentes com Android oferecem 210 mil. Entretanto, estes têm mais aplicações gratuitas, crescem três vezes mais rápido e devem ultrapassar o iPad em aplicações até agosto (as informação são das empresas Distimo e Research2Guidance).
Se não há lógica, melhor apelar para a psicologia. Pensando no absurdo da cena, ficou claro que a Apple cria popstars. Da mesma forma que fãs de bandas se acotovelam na saída de shows ou porta de hotéis, sofrendo por um autógrafo, o iPad 2 é o astro tecnológico do momento. Aqueles eram seus fãs dispostos a qualquer coisa. Obviamente, nada racional. Mas o pior ainda não havia acontecido.
Às 7h35, uma funcionária da loja saiu e avisou a fila que não havia iPads para usuários da operadora celular AT&T. Um grupo começou a se afastar. A notícia era ruim para os usuários internacionais porque os iPads da AT&T são os únicos que aceitam sim cards, os chips que vão dentro dos celulares. Portanto, só havia iPads da operadora Verizon, que usa tecnologia CDMA (a mesma que a operadora Vivo usava antes) e não permite a inserção de chips.
Depois de falar sobre os iPads da Verizon a funcionária falou algo sobre Wi-fi, de onde os candidatos concluíram que valia a pena esperar para comprar um iPad sem 3G. Sobraram 35 pessoas.
Enfim, às 8h30 a mesma funcionária sai novamente distribuindo pequenos papéis. Era pegar um e voltar às 10 horas, quando a loja abria. Então, ainda na frente da fila, ela falou mais alto: “Mas eu disse que só tinha Verizon”. Alguns clientes saíram de trás da fila e rodearam a funcionária. “Não, não temos Wi-fi”, ela repetiu. Um cliente retrucou, nervoso: “Mas ninguém lá atrás ouviu você falando”.
Mais gente começou a ir embora, entre frustradas e irritadas. No fim, menos de 10 pessoas pegaram um senha, para voltar mais tarde e finalmente comprar o aparelho. Há uma loja em Nova York que fica aberta 24 horas por dia, mas a realidade no resto dos EUA é essa: cliente chega às 6h e a loja abre às 10h.
Achei uma loja de eletrônicos na mesma rua (aberta desde às 7h), onde perguntei quais os tablets disponíveis. Havia um Xoom, tablet quase do mesmo tamanho do iPad, mas fabricado pela Motorola (os fabricantes pronunciam “zum”, mas no Brasil o som da letra X pode fazer com que fique “chom” ou no máximo “chum”).
O iPad tem 9.7 polegadas, o Xoom tem 10.1. O sistema operacional do aparelhinho concorrente é o Android, da Google. Uma vantagem para mim e outros clientes, porque é o mesmo sistema operacional de diversos celulares e bastante amigável com os aplicativos do Google disponíveis no computador.
Em 15 minutos eu saía da loja com o Xoom em mãos. Em casa e na rua, me diverti acessando sites de informação e o Facebook. A qualidade da tela é excelente, o touch-screen idem e a navegação é boa (com exceção de alguns sites, que decepcionam. Espero que com o tempo melhore).
De volta ao Brasil, peguei um tablet da Samsung para testar, o Galaxy, com 7 polegadas (também com o sistema Android e produzido no Brasil). A fabricante coreana já avisou que até julho deve chegar ao Brasil um modelo com 10.1 polegas. E até agosto, outro modelo com 8.9.
A Apple resolveu adiantar a produção do iPad no Brasil e já começou a vender. Talvez a loucura coletiva não se repita, há menos brasileiros dispostos a loucuras por um produto da Apple. Só podemos esperar que a empresa descubra uma maneira de tratar melhor os consumidores. Apesar do Brasil ser um país tropical, há cidades em que as madrugadas de junho e julho são bem frias.